Professor Pedro Vasconcelos,
um especialista em cidades
Um
dos responsáveis pela implantação do programa de Pós-Graduação em
Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social da UCSal e professor
do curso de Mestrado, o geógrafo Pedro Vasconcelos encaminhou
para a Edufba a segunda edição ampliada do livro “Salvador –
transformações e permanências (1549-1999)”, com lançamento previsto para
o segundo semestre. Obra referência para quem estuda as mudanças
ocorridas na capital baiana ao longo dos séculos. Pernambucano, que se
mudou para Salvador na década de 1970, Vasconcelos também é professor da
Universidade Federal da Bahia, tem título de Mestre pela Université
Catholique de Louvain, na Bélgica, de Doutor (Ph.D) em Geografia pela
Université d’Ottawa, Canadá e Pós-Doutorado na Universidade de Paris
IV-Sorbonne. Foi diretor-superintendente da Conder nos anos 70, que na
época era Companhia de Desenvolvimento da Região Metropolitana. Nessa
entrevista, Vasconcelos fala das transformações ocorridas em Salvador e
de sua obra.
Quais as raízes dessa expansão urbana desordenada em Salvador?
É
difícil sintetizar diante de tantas coisas. Para começar Salvador está
situada numa ponta. A forma da cidade não é muito boa, tem até discussão
se é uma península ou se é um cabo, muitos dizem que é um cabo grande.
Mas veja, não é uma cidade como São Paulo, que conta com 360 graus para
sua expansão. Estamos muito limitados e a topografia é complicadíssima.
Você tem a opção da orla atlântica, no norte e, por outro lado, a saída
está bloqueada pela orla da baía. A expansão é complicada. No passado a
cidade era voltada para a baía de Todos os Santos. E foi crescendo pelas
cumeadas. As cumeadas eram valorizadas e os vales desvalorizados. Com a
abertura dos vales nos anos 70, com Antonio Carlos Magalhães na
prefeitura, a cidade ficou de cabeça para baixo. Me lembro quando
cheguei aqui, os vales eram vazios. Mas foram se valorizando. E a cidade
se tornou, basicamente, apoiada no automóvel e no ônibus, abandonando o
sistema de bondes que era muito eficiente. Com os bondes se podia ir
até o Santo Antonio Além do Carmo. Passava na Rua Chile, ia até o Rio
Vermelho, por cima e por baixo, Liberdade, etc. Enfim, os bondes foram
desmontados. Outro fator inconveniente é que não temos uma boa ferrovia.
Fortaleza, por exemplo, tem vários ramais que entram na cidade. Aqui só
temos um, que entra na beira d’água, não entra por cima. Na BR-324
deveria ter uma ferrovia. Então, a expansão da cidade poderia ser por
base ferroviária.
Isso aumenta os problemas de mobilidade urbana...
Quando
eu cheguei aqui, nos anos 70, para trabalhar na Conder, propus a ideia
de colocar uma ferrovia entre a Avenida Paralela e a BR-324 e o
crescimento da Paralela poderia ser ordenado, um pouco como Curitiba,
adensando em torno dessas vias. Mas deu-se prioridade ao transporte
rodoviário. Expandiu-se o bairro de Mussurunga, com o Centro
Administrativo no meio. Salvador é uma das cidades mais difíceis que
conheço, não só pelos problemas citados, mas pela desigualdade social,
pela grande quantidade de invasões. Em São Paulo, o problema lá são os
loteamentos populares precários, na periferia, mas os loteamentos são
capitalistas, você paga um lote e a cidade se expande. Aqui existem
invasões nessa topografia, vão subindo escadinhas, batendo laje. Imagine
as condições sanitárias.
O traçado do metrô de Salvador vai resolver a mobilidade da cidade?
É
complicado. Você desce de Cosme de Farias para pegar o metrô e depois
tem que subir de novo. É um projeto muito mal direcionado. Eu ainda
peguei um estudo sobre transportes na década de 70 e a ideia era fazer
essa espécie de anel ferroviário com três penetrações em Salvador,
incluído a Avenida Juracy Magalhães, a partir de dados de origem e
destino. Então, a ideia de um metrô é para substituir o automóvel. É
preciso perguntar para onde a população está indo. É para a Lapa ou para
o Iguatemi? Mas, depois podem remendar (o traçado).
Então não resolve?
Eu
achava que deveria ser um metrô completo, como em Lisboa. Faço muito
contraponto com Lisboa, que tem uma topografia muito parecida com a
nossa, não é uma cidade do primeiro mundo e lá o metrô, através das
estações, liga a cidade alta à cidade baixa, por escadas rolantes. Você
tem na Cidade Baixa os ministérios e as pessoas trabalham na área
central, a área central não morreu. Tem bondes modernos elétricos, você
pode ir para praia de trem com ar condicionado. Você vai para todo o
litoral norte (o que seria o nosso Paripe, Periperi) em direção a
Estoril. O pessoal vai com barracas de praia no trem. É humilhante. Ou
seja, uma cidade com uma população de 3 milhões de habitantes, mais ou
menos igual a Salvador, mesma aglomeração, você vê? Tem bonde antigo,
bonde moderno, ônibus comum, funiculares (plano inclinado) metrô e os
trens atravessando o país inteiro, parando na cidade, articulado com o
metrô. Mas isso custa caro. Ruim é que estamos num momento em que o
governo do Estado é do mesmo partido da presidente da República, mas não
recebe nem a metade do que deveria. No Rio você vê a diferença.
Pernambuco não quero falar porque sou suspeito. Salvador concentra
muitos recursos em relação ao interior, mas é visível que a cidade está
se deteriorando.
Salvador está inchando...
Salvador
não tem nenhum contraponto. Você vai a Recife, tem Jaboatão, Olinda,
são cidades que Recife desdobrou em cima. Belo Horizonte tem Betim.
Salvador é tudo aqui. Você vai em Camaçari, que é relativamente rica,
mas qual é a população? São Francisco do Conde também, cheia de dinheiro
com a refinaria, e qual a população? As pessoas vão lá e voltam. Não se
conseguiu fixar essas pessoas por lá. Por exemplo, (o condomínio) Vilas
é uma alternativa, em um município intermediário, você tem um local
agradável para se morar, que segurou alguma classe média, empresários.
Mas de um modo geral era a Pituba que respondia por isso. Oferecendo
ônibus subsidiado, nenhum operário quer ficar em Camaçari. Ele vai
querer moram onde? Os filhos vão estudar onde? Então, Salvador virou uma
cidade dormitório sem ganhar nada em troca. Está numa situação difícil,
tem recursos baixos, tem uma diferença social muito grande, um relevo
complicadíssimo. É um “abacaxi” para qualquer prefeito. E pior é que não
tem, como em Minas, uma cidade que seja um contraponto a Salvador. Era
para Vitória da Conquista, Barreiras, terem universidades grandes, como
Uberlândia, Juiz de Fora, em Minas, onde a coisa é mais equilibrada.
Enquanto isso o interior é esquecido...
Aqui
parece que o interior quase regrediu. E é difícil uma política de
descentralização porque tudo está concentrado em Salvador. Vejas as
ambulâncias que os prefeitos dos municípios do interior mandam
diariamente para a capital. Milton Santos já dizia isso em relação à
França. Tudo era concentrada em Paris, indústrias, universidades. Ele
fazia esse paralelo, “Salvador e o deserto”. Não tem nada que faça um
contrapeso a Salvador. O próprio eixo Ilhéus/Itabuna poderia fazer esse
contraponto, mas o pessoal lá preferia morar no Rio ou Salvador (no
apogeu do cacau). Acho que não houve uma política espacial. A gente tem
um semiárido muito problemático e Salvador é muito atrativa. Mas agora
está ficando o contrário, o trânsito complexo, a violência está muito
grande, a gente sai de casa e não sabe se volta.
Os conceitos sobre as cidades de um modo geral e Salvador em particular estão na obra do senhor...
São dois momentos. O livro Dois séculos de pensamento sobre a cidade,
foi o resultado do meu pós-doutorado. E, como eu dava aula em
Arquitetura sobre teorias sobre a cidade, procurei estudar os textos
originais, porque eu achava que aqui repete muito as “brigas de branco”
(franceses contra alemães...). Aí pensei: vamos ver nos originais o que
eles tratavam. Na época da primeira edição, 1999, não tinha internet.
Então pensei em levar para a pós-graduação todo o material reunido, que
interessa. Examinei mais de 200 textos que tratam das teorias sobre as
cidades, que servem também para as minhas aulas na pós-graduação. O
outro livro, Salvador – transformações e permanências (1549-1999) é
a aplicação. É um estudo de como a cidade se desenvolveu, da fundação
até 1999. Eu fiz a segunda edição agora, ampliada e atualizada. No livro
faço uma espécie de periodização, baseado nos momentos em que houve
cortes, mudanças e a partir de cada um desses momentos criei uma
metodologia própria, em cada um deles trato do contexto histórico para o
leitor se situar. Destaco os agentes fundamentais de cada período, a
Igreja, o Estado, ou seja: os produtores da cidade. E, no final de cada
capítulo, comparo as transformações espaciais que ocorreram por
paróquia. Brotas, Santo Antonio, etc. Porque as paróquias antecederam os
subsdistritos atuais. Você vai encontrar o papel do Estado, da Igreja,
do que aconteceu na Penha durante cada período. Nessa segunda edição a
sair, eu quase dupliquei os dados, na pesquisa que estou fazendo. A
edição francesa, Salvador de Bahia (Brésil: Transformations et Permanences (1549-1999) saiu em e-book. Meus livros demoram um pouco de sair também porque sou perfeccionista. Não preciso de inimigos, não.
O tráfico de escravos foi uma das forças motrizes da economia baiana?
Sim. No
início do século XIX, a economia agrícola estava decadente e os preços
dos escravos eram altos. Uma das marcas dessa riqueza é o Corredor da
Vitória, onde existiam mansões de traficantes como a casa que hoje é o
museu (de arte do Estado) de José Cerqueira Lima, um dos grandes
traficantes. O tráfico foi um agente fundamental da economia. Rendia
tanto que (o historiador) Pedro Calmon exemplificou: com um navio de 200
escravos daria para comprar seis engenhos, na virada dos séculos
XVIII/XIX.
Qual a marca mais evidente que Salvador tem do passado?
O ranço
da escravidão. As diferenças sociais, o 'dar ordem'. As pessoas gritam,
aqui, com os empregados, menino dá ordem. O peso de uma sociedade que
não é igualitária, que não é democrática. Por exemplo, as pessoas
(“importantes”) não querem entrar em fila, não querem estacionar no
local adequado. É uma sociedade autoritária. Em São Paulo isso não
ocorre. Por causa do peso dos emigrantes, que vieram com outra noção (de
relações sociais). Aqui, em Salvador, não houve impacto da
industrialização, da massa operária, do apito da fábrica, que é muito
forte no ABC paulista, Porto Alegre e outras regiões. Então, a gente tem
esse ranço do escravismo que é ruim para todos, dominantes e dominados.
As relações clientelistas e o paternalismo estão presentes até hoje.
Por exemplo, quando entrei na UFBA, nos anos 1980, algumas pessoas
traziam empregados para trabalhar na Universidade, para fazer o seu
mingau...”.
A
pesquisa do senhor derruba vários mitos sobre a escravidão. Salvador é
um caso à parte nas relações sociais durante aquele período?
Sim. Os
mitos foram criados devido ao grande peso da escravidão na sociedade
brasileira. Talvez devido à crueldade e à injustiça do sistema
escravista. Contudo, ao analisar o censo de 1775 de duas importantes
freguesias de Salvador, São Pedro e Penha, encontrei um quadro bem
diferente da imagem que se tem. A análise dos dados mostra que não é
possível conceber a existência de apenas duas categorias na sociedade
daquele período, como as de senhor e de escravo, caracterizando-as como
dominantes e dominados. A sociedade colonial urbana era bem mais
complexa, pois nela conviviam brancos ricos, médios e pobres, inclusive
numerosas mulheres chefes de família. Os libertos, pardos e pretos,
também faziam parte da mesma sociedade colonial, tendo ocupações
rentáveis. Muitos brancos eram pobres, não tinham escravos e
trabalhavam, o que vai contra o outro mito da ociosidade dominante no
período escravista.